terça-feira, 26 de junho de 2007

REVIRAVOLTAS DE PIRATINI

I
Nas proximidades de Piratini, no começo da década de 1830, existiam duas famílias, altamente reconhecidas pela criação de gado em seus extensos campos. A família Santos era liderada pelo bravo Facundo, um patriarca de princípios bem definidos: boa índole, disciplinador e, ao mesmo tempo, dotado de amor e carinho para com seus entes queridos que habitavam seu enorme casarão, situada no meio da imensidão de terras de sua fazenda. Lá moravam, também, sua irmã Catarina, seus sobrinhos Rui, Roberto e Ramiro e seu principal herdeiro, o primogênito Manoel da Silva Santos. Esse último era um rapaz centrado no trabalho, sempre envolvido nas atividades da fazenda, baseando-se em seu velho pai já que almejava liderar todo o império dos Santos.
Concomitantemente, perto daquelas bandas, residia a família Lima, composta, basicamente, pelo pai Válter, sua mulher Carmesita e pelas filhas Eleonora e Maria. A exemplo da família Santos, também voltados para a produção de charque. Tempos antes, as duas famílias eram concorrentes no mercado de charque, porém com a falta de incentivo nacionalista do império e o crescimento da produção castelhana de charque, a concorrência aumentou aceleradamente com os argentinos, afetando assim, a situação financeira de ambas as famílias.
Em uma manhã muito fria do inverno de 1834, Facundo resolve ir ao armazém da cidade para comprar o costumeiro fumo para seu cachimbo. Chegando lá, acaba por encontrar Valter sentado numa mesa tomando sua caninha e falando da situação do charque para o dono do estabelecimento. Logo ao dar o primeiro passo dentro do local, Facundo diz:
- Buenas! Vejo que o charque também é assunto por aqui...
Valter responde em tom tristonho:
- As coisas não andam bem para nós, nossos negócios estão indo de mal a pior. Tu sabes que essas medidas do império só prejudicam o sul.
- O charque argentino está com um preço menor que o nosso devido a falta de taxas.
- E já tem gente pensando em revolução. Ficaste sabendo?
- Ouvi alguns boatos. Creio que tenhamos que tomar certas medidas.
Os dois antigos concorrentes passaram um bom tempo dialogando naquela mesa de cedro sobre os tempos atuais. Com tantos problemas em comum, acabaram deixando a rivalidade de lado e começaram a fortalecer ali os laços que mais tarde se tornariam uma sólida amizade. Conforme o tempo passava e a crise se agravava, as conversas entre os dois eram mais freqüentes.
Algum tempo depois, Válter solicitou, por meio de seu mensageiro, a presença de Facundo para um jantar inadiável, a realizar-se na sua fazenda. Após deliciarem um bom churrasco assado pelo melhor churrasqueiro de Piratini, prepararam o fumo e o mate para a tradicional conversa dos novos amigos. Inúmeros assuntos ali eram tratados, mas Facundo ainda não sabia o porquê da urgência daquele jantar particular.
- Válter, podes me dizer qual o motivo dessa chamada de urgência?
- Meu amigo, precisamos tomar alguma providência o mais rápido possível para melhorar nossa atual situação. As vendas estão caindo cada vez mais, e com isso nosso lucro só diminui. Em breve nosso padrão de vida piorará e não quero nem imaginar o que virá depois.
- Penso em nosso filhos. O que sobrará para eles?
- Nossos filhos... acho que encontrei uma saída.
- E qual seria?
- A união de nossas famílias.
- Mas como isso se daria?
- Por meio do matrimônio de Maria e Manoel.
- Como isso ajudaria?
- Nossas terras se unificariam, a produção aumentaria, a concorrência entre nós não existiria mais, os lucros seriam maiores...É um futuro mais garantido.
- Boa idéia, meu amigo.
A conversa fluiu nesse ritmo e ambos concordaram que o casamento entre Maria e Manoel era a melhor saída para as duas famílias.

II
Manoel e Maria com o tempo acabaram se conhecendo melhor, tendo como conseqüência o noivado, marcado para dali quatro semanas semanas. Mais por vontade do rapaz e dos dois pais. Fato que ficou provado para sua melhor amiga e irmã, em uma conversa vivenciada durante uma noite amena de primavera. Maria desabafava com Eleonora:
- Sabe, Leo, não tenho certeza se quero realmente me casar com o Manoel. Não sei se realmente gosto o suficiente dele para concretizar esse capítulo tão importante e decisivo na minha vida.
- Maria, acho que já é tarde de mais para questionar essa decisão. Creio que papai não deixaria tu voltar atrás...
- Que será que eu faço agora?
- Procure ver os pontos positivos que esse casamento pode nos proporcionar...
- Mesmo que eu não seja feliz?
- A felicidade vem com o tempo, pode acreditar. O amor é secundário...
- Minha irmã, eu sempre esperava encontrar um homem que chamasse a minha atenção, que fizesse o meu coração disparar e bater mais rápido. O Manoel é um bom rapaz, tenho um carinho especial por ele. Mas não o vejo como o marido ideal para mim.
- Por que não experimentas falar com o papai?
- Agora já é tarde. A festa está chegando e os preparativos estão quase todos prontos. Farei esse sacrifício pela família.
Conforme passava o tempo, as horas de sono de Maria diminuíam. A moça sentia um misto de ansiedade e tristeza. Na flor dos seus 20 anos de idade, não fazia a mínima idéia de como se relacionaria com um homem, uma absoluta novidade na sua vida. Porém, tinha uma certeza: ela não o amava.
O grande dia chegou. Estava previsto para as sete horas e todas as figuras importantes de Piratini foram convidadas. Membros do clero, proprietários de terras menores, donos de armazéns e comércios... todos presentes para prestigiar a oficialização do noivado dos filhos dos dois homens mais importantes daquelas bandas. Claro, estava tudo muito bonito: o vestido de Maria, os comes (preparados pelas melhores cozinheiras), a decoração do salão de eventos da casa de Facundo. Porém, ninguém da cidade sabia o real motivo do casamento que estava unindo duas famílias rivais por natureza.


III
O casamento de Maria e Manoel estava apenas pendente do agendamento da data. As famílias melhoravam o relacionamento a cada dia, e Maria ia se conformando com a idéia de casar com um homem por quem não sentia um verdadeiro amor. O mesmo não valia para Manoel: o rapaz nutria um forte sentimento pela filha de Válter, e fora um dos que mais gostara do que fora combinado. Viu ali a oportunidade de realizar o sonho de ter um filho que fosse igualzinho a ele e de poder constituir uma família.
Só que as coisas em Piratini andavam um tanto quanto turbulentas. A revolução estava a um passo de estourar. De um lado os republicanos, gaúchos que eram a favor da separação do estado do resto do país. Do outro os imperialistas, que desejavam a permanência do Rio Grande no país. O clima de tensão dominava a cidade e o espírito de luta tomava conta dos gaúchos.

IV

Valter e Facundo estavam sentados nos mesmos bancos que ocuparam durante a primeira conversa quando chega o mensageiro da cidade anunciando que os imperialistas acabam de cruzar as linhas do estado do Rio Grande:
- Senhores! Senhores! Venho da cidade com a noticia de que tropas imperialistas estão cruzando as fronteiras do estado!
Facundo toma a liderança da situação e diz: - Valter, reúna seus escravos, os mais fortes e guerreiros, farei o mesmo com os meus. Vamos à luta!
Valter responde com fervor: - Concordo, vou reunir meus homens e armá-los ainda hoje, amanhã partiremos para nos encontrar com os outros comandantes.
Os dois chefes de família vão cada um para suas fazendas ambos exigem a presença de todos os escravos para uma reunião, e lá fazem uma seleção dos aptos para lutar. Após feita a seleção, os cavalos são selados e as armas preparadas. Cada homem dorme cedo para poder estar de pé assim que o sol nascer, acordam, e logo se despedem. Quem recebe uma despedida um pouco fria é Manoel, Maria não soube lidar com tal situação, a ida de seu pai junto com seu prometido a abalou muito. Ela sentiu-se pior ainda ao pensar que não se importava tanto com a ida de Manoel, mas sim com a ida de seu pai. Os homens partem todos para a reunião das tropas ao norte e Maria senta-se na varanda e começa a fazer um cobertor para distrair-se durante a difícil fase que virá.
A marcha segue por algumas horas, durante as quais muitos guerreiros vestindo trapos, em sua maioria, se juntam aos oriundos de Piratini. Ao começo do pôr-do-sol, Manoel lança seu olhar ao horizonte, e percebe uma grande aglomeração de soldados. O maior exército que ele vira até o momento, ficando absolutamente encantado e motivado para lutar pelo ideal comum de tantas pessoas.
Enquanto isso, Piratini passava por apuros. A Guarda de Fronteira, vinda da fronteira do Rio Grande com a Argentina, rumava em direção ao norte para ajudar na luta contras os revolucionários separatistas, porém com a chegada da noite a Guarda decide passar a noite na cidade mais próxima, no caso Piratini. Os soldados montados em cavalos chegam a rua principal de Piratini tomados com um ar de superioridade, e geram olhares desconfiados de inúmeros moradores. Maria, ainda sentada na varanda da fazenda de seu pai, percebe, através das tochas que os soldados carregavam, que algo estava acontecendo na rua principal. Decide, pensativa, ir até o armazém a fim de reconhecer a razão do ‘tumulto’.
Chegada na rua principal, Maria percebe que a cidade está tomada de soldados da Guarda de Fronteira. Ela ouvira boatos que elevavam os membros dessa organização como os mais bem treinados em todo o império. Notou, então, que a cidade estava totalmente desprotegida com a saída de seu pai e seus homens. Ela ruma para o armazém, sempre olhando para os cavaleiros vestidos de branco e de azul. Ao chegar ao último cavalo do pequeno exército, o combatente que o montava chamou-lhe a atenção. Era um rapaz jovem e bonito, com traços visivelmente europeus, com pele e cabelos claros. O tal combatente, ao perceber a presença de Maria, tirou seu chapéu em sua homenagem, e fitou-a com um ar encantado.
Na manhã seguinte, ao olhar pela janela, Maria observa que a tropa da Guarda já não se encontrava mais instalada na rua principal. Provavelmente já havia tomado o caminho do norte. Marchando para a guerra, e para uma possível morte. Não pode deixar de pensar no jovem guerreiro. Tão jovem, mas notoriamente tão vivido, seu olhar sem medo da morte, com certeza tratava-se de um bravo combatente.
Manoel acordou, nessa mesma manhã, com o nascer do sol. Um dia lindo projetava-se, um dia que seria conhecido mais tarde, como o ponto inicial de uma grande guerra, uma grande revolução, um mar vermelho se formaria, e os corpos, já sem vida, cobririam os campos gaúchos.
Perto do meio-dia, os dois grandes exércitos se encontraram, há alguns quilômetros da fronteira com Santa Catarina. Uma batalha sangrenta ocorre, milhares de mortos se amontoam pelo chão, a terra fica vermelha, do mesmo modo que o riacho que passa pelo local de batalha ficou. É apenas a primeira batalha de muitas que formam uma grande guerra. O exercito recém formado gaúcho estava com muita disposição para lutar e honrar seus ideais de forma aguerrida. Conseqüentemente, os imperialistas vindos da fronteira sul levaram a pior tanto pela bravura dos gaúchos como por estarem em perceptível minoria. Pouquíssimos combatentes do exercito imperial conseguiram se salvar, se dispersaram pelas terras do estado rio-grandense. Capitão Gonçalves foi ferido apenas de raspão por um balaço. Foi um lance de sorte, coisa que todo bom soldado deve ter. Sem mais opções, devido ao exército gaúcho estar bloqueando a passagem para o norte, Gonçalves teve de voltar para o sul. Marchou incessantemente
até as bandas de Piratini por onde passara no caminho de ida à guerra. Sentou-se em uma árvore de um capão e suas pálpebras caíram como chumbo. Acordou-se no mesmo lugar, porém com uma dama em sua frente. Ela havia cortado a manga de sua camisa ensangüentada e estava por começar algum curativo. A memória do capitão ainda estava prejudicada, porém achou aquele rosto familiar. Conhecia aquelas lindas feições de moça de algum lugar, mas por estar com a cabeça latejando demasiadamente, não sabia responder. Maria também se lembrava dele, lembrava pelo fato de ele ter mexido com ela, com seu coração.
Em virtude da vitória na batalha, Valter, Manoel e Facundo demoraram para voltar a Piratini. E nos dias que sucederam o conflito, os encontros entre Maria e Gonçalves se tornavam mais freqüentes, aflorando cara vez mais os sentimentos que ambos nutriam um pelo outro. Cerca de uma semana mais tarde, a altura em que Maria mostrava-se bastante preocupada com a possibilidade de morte de seus familiares guerreiros, aparecem alguns cavalos no horizonte, vindos do norte em lentos passos. Facundo vinha a frente, seguido por Manoel, Valter e meia dúzia de escravos sobreviventes. Ao ter essa visão, Maria percebeu que mesclava sentimentos de alívio com a chegada do pai, e de apreensão com a chegada se seu noivo.
A medida que seus encontros secretos com Gonçalves avançavam, ela percebia que seu destino era ficar ao lado desse cavalheiro, homem bonito e educado, corajoso, sem medo de viver, de ser ousado. Porém, ao mesmo tempo que esse sentimento se manifestava explicitamente, o medo que ela sentia de revelar isso para seu pai ficou claro para sua irmã, Eleonora, em uma conversa que tiveram na manhã seguinte da chegada de seu pai:
- Eleonora, tenho certeza de que Manoel não é o homem que quero para passar o resto da minha vida.
- Já deixei bem claro para ti, é tarde demais para tomar qualquer decisão agora. O amor vem com o tempo, se tu não amas ninguém, com o passar dos dias vai amar o teu marido.
- E se eu estiver amando outro alguém?
- Aí as coisas mudam. Ainda creio que papai não deixaria você cancelar tudo agora.
- Não sei o que eu faço, irmã...
Após essa conversa, Eleonora começou a se preocupar com as possíveis atitudes que sua irmã poderia tomar. Suspeitava que ela pudesse fazer alguma coisa por impulso, sem pensar nas conseqüências, sem pensar nos sentimentos que tal ação poderia acarretar. Maria, porém, estava segura de que gostaria de passar o resto de seus dias ao lado de Gonçalves, por quem ela já admitira sentir algo muito forte nos seus pensamentos. Algo chamado por muitos de amor.
Gonçalves sabia que nunca seria bem visto pela família de Maria, afinal, o Rio Grande estava em uma revolução, lutando contra as tropas imperialistas, das quais ele fazia parte. Além disso, Maria estava prometida a outro homem. Um gaúcho de sangue. Isso lhe atormentava, lhe colocava em um dilema: também queria viver em paz com Maria, algo que nunca aconteceria em Piratini. A única solução que lhe passou pela cabeça foi exposta a Maria no próximo encontro que tiveram: - Maria, ontem, refletindo sobre nossa situação, sobre nossos sentimentos, cheguei a conclusão de que quero passar todos os dias da minha vida ao seu lado. Percebi que desde que olhei pra você pela primeira vez.... senti que era amor de verdade.
- O quê? Eu também te amo Francisco, mas como posso explicar isso para meu pai?
- Talvez seja melhor não explicar...
- Que queres dizer com isso?
- Vamos fugir? Cruzar a fronteira com a Argentina, construirmos uma vida juntos, uma vida cheia de felicidade e companheirismo, criarmos nossos futuros filhos longe dessa revolução... Abandonarei a Guarda de Fronteira, arranjarei um emprego, construiremos uma casa e levaremos uma vida tranqüila.
- Não posso deixar tudo para trás, Francisco. Tenho meu pai, meu noivo, minha irmã, minha família. Como eles ficarão?
- Não irei lhe obrigar a nada, Maria, peço apenas que siga seu coração...
Maria levantou-se e rumou pensativa para casa. Seu coração lhe dizia que ela deveria aceitar a proposta, construir uma vida ao lado de seu amado, mas seu tom racional lhe mostrava que o caminho mais sensato a seguir era casar-se com Manoel. Esse dilema a atormentou durante o caminho, e durante a noite também. Noite na qual sonhou com a frase “siga seu coração”, “siga seu coração”.
Ao acordar na manhã seguinte, Maria estava decidida: iria fugir com Gonçalves, iria realmente seguir seu coração. Com a chegada do pôr-do-sol, Maria deixou Gonçalves no esconderijo onde se encontravam, e rumou para casa. Arrumou uma pequena mala, com meia dúzia de roupas limpas, escreveu uma carta explicando tudo para seu pai, e para Manoel, e logo em seguida partiu de sua casa, para nunca mais voltar. Encontrou Gonçalves novamente, e os dois partiram em um cavalo branco, rumando para oeste, sem destino certo, apenas marchando em direção ao horizonte.
Na manhã seguinte, houve um grande tumulto na rua principal de Piratini. Valter Ferreira Lima encontrava-se furioso no meio da rua, com um revólver empunhado em uma das mãos e o chicote em outra. Aos berros xingava sua filha, que aparentemente havia largado tudo, e partido sem rumo na companhia de um imperialista. O baque na cidade foi grande, uma grande onda de choque tomou todos os moradores. A filha de um dos homens mais importantes da região havia abandonado sua família para se juntar a um guerreiro imperialista.
Notoriamente, o mais abalado com a repentina partida de Maria era Manoel. O rapaz entrou em profunda depressão: fora abandonado por sua noiva as vésperas do casório.
Meses se passaram, e a tristeza de Manoel foi diminuindo. Ele desabafava com Eleonora, que seria sua cunhada. Conversavam muito, e com o passar do tempo tornaram-se grandes amigos e, posteriormente, namorados, noivos e finalmente marido e mulher. Tiveram dois filhos. O mais velho, Facundo, em homenagem ao pai de Manoel; e o mais novo foi batizado como Valter, em homenagem ao pai de Eleonora. O tempo tratou de curar, também, a raiva de Valter perante sua filha Maria, sendo que tal ocorrido deve-se principalmente a junção de sua família com a de seu querido amigo Facundo e ao nascimento de seu primeiro neto.
As coisas permaneceram difíceis durante aproximadamente dez anos. Tempo que durou a guerra, a revolução. Tempos sofridos, de perdas, como no caso de Roberto e Rui, levados pela guerra. Mas o casamento de Eleonora e Manoel durou por muitos anos, durante e depois da guerra. Piratini cresceu, sem a presença de Maria, sem nenhuma notícia da esquecida filha de Valter Ferreira Lima.

Nenhum comentário: